terça-feira, 23 de outubro de 2007

Demolindo a história

Há pouco tempo produzi um documentário sobre a história da economia de Oliveira. Com esse trabalho pude descobrir muita coisa que não sabia. Uma delas é que a cidade já teve três fábricas de cerveja, e chegou a exportar 80 mil garrafas por ano.
Todas as descobertas me deixaram surpresos, porém, ao mesmo tempo, me acrescentou um problema: Um produto de audiovisual precisa ter áudio e imagens. A questão era: Como ilustraria um texto que fala de fábricas e pontos comerciais, dos quais, muitos já não existiam mais. Para alguns casos consegui fotos ou usei imagens de produtos ou objetos que remetiam aos tais ofícios, mas, em outros, não havia nada que pudesse referenciá-los.
Pesquisando a localização desses comércios, descobri que muitos tinham deixado de existir, mas a casa ou o prédio onde eles funcionaram, não. Assim consegui resolver o problema: Com imagens dos casarões antigos de Oliveira pude dar uma referência dos pontos comerciais que ali se estabeleceram, remetendo o espectador para a época em que eles existiram.
O patrimônio histórico de Oliveira carrega a nossa história. Fábricas, bares, mercearias, alfaiates, fotógrafos e barbeiros, passaram, mas a história esta enraizada. Graças às ações de pessoas que lutaram pela conservação desse patrimônio, pude contar, através dele, a história da nossa economia. Esse pensamento prevalece também nos países mais desenvolvidos da Europa e do Oriente, mas, ao que parece, por aqui, não.
Esta semana, infelizmente, vi mais uma casa de valor histórico ser demolida na cidade. Uma construção de 1930 que trazia detalhes arquitetônicos próprios do seu tempo. Um estilo que remetia para a época áurea da estrada de ferro e da Praça da Estação. Não sou saudosista, mas valho-me das raízes para crescer com solidez. Lembro-me que ali, anexo àquela casa, havia uma vendinha onde levava café para moer. Quando descia para as minhas aulas no Francisco Fernandes sempre passava lá para compra balas “Banda”. Certa vez eu e meu amigo Pepê voltávamos do grupo e vimos um menino que sempre ficava na porta da vendinha para insultar-nos. Nesse dia resolvemos dar-lhe uma lição, mas o seu Zé apartou a briga e nos fez pegar na mão um do outro, depois nos tornamos grandes amigos. Toda vez que passo por ali me lembro desse fato. Mas agora está tudo acabado. Destruíram a minha referência histórica e creio que a de muita gente.
Vi uma foto em que aparece uma locomotiva, em primeiro plano, estacionada onde hoje é o hospital de Oliveira e, ao fundo, a casa que acabaram de demolir. Assim como a vendinha do seu Zé, havia vários outros armazéns no entorno da estação, e que hoje são referências daquela época. Isso é história. História é cultura. E cultura é a alma, é a identidade de um povo. Estão demolindo a nossa história, destruindo a nossa cultura, e nos deixando sem identidade. O pior é que indiretamente participei dessa decisão, porque fazia parte do conselho que votou pela demolição. Votei contra, é claro, mas vi colegas votarem a favor. Fiquei de queixo caído. Como pode um Conselho de Patrimônio Cultural votar pela demolição de um bem histórico?
Procurei não me influenciar pelo apreço que tinha por aquela casa ou pela noção de história da arte, de estética e de outros conhecimentos que adquiri no curso de arquitetura. Votei pela avaliação que me trazia um laudo desenvolvido por um arquiteto e por um historiador, credenciados pelo IEPHA. Argumentei durante a reunião que, como leigos, deveríamos nos apegar a esse laudo. Não podíamos tomar uma decisão importante dessa baseada na opinião subjetiva de cada um. O imóvel foi inventariado, e segundo os técnicos, possui valor histórico e arquitetônico, e comunga com as construções do seu entorno. Quem somos nós para contradizer? Será que os membros leigos da irmandade do hospital de Oliveira discordam dos diagnósticos dos médicos e mandam trocar os remédios dos pacientes?
Algumas coisas foram ditas, na imprensa, por colegas que eu respeito muito, mas tenho que discordar: Uma delas diz que não se pode limitar o direito de propriedade em nome do interesse público. Ora, o direito de propriedade tem que ser respeitado, mas é lógico que o interesse público prevalece sobre interesse individual. E é claro que o valor histórico torna o bem de interesse público. Em outra, um membro do conselho disse ter lamentado que isso tenha vazado para a população. Meu Deus, mas o conselho está ali representando o povo de Oliveira e qualquer decisão tomada por ele deve ser pública! Esse mesmo conselheiro afirmou que a grande maioria votou pela demolição. Mas que grande maioria é essa, já que participaram da reunião dez pessoas, das quais cinco eram contra, e cinco a favor. Um membro do conselho que era contra a demolição teve que substituir o presidente, por isso perdeu o direito de voto, dando, portanto, a vitória para os que eram a favor. O engraçado é que cinco pessoas votaram pela demolição e dez se desligaram do conselho por não concordar com a decisão.
Penso que em momentos como esses é preciso deixar de lado as relações, sejam elas comerciais, de amizade, ou de interesses econômicos, porque o que está em jogo é a nossa história, a nossa cultura, a nossa identidade. Quando os netos e bisnetos forem catalogar a vendinha do Seu Zé ou a casa que ali existia, como parte do trabalho que a professora de história pediu, nós não estaremos mais aqui, nem os nossos amigos, nem os nossos clientes. Mas o nosso erro ficará. Assim como ficou o da demolição do Teatro Municipal e de tantos outros casarões que já se foram.
Se persistirmos nesse erro, acabaremos condenados pela própria história ao legar para o futuro um deserto ecológico e cultural a um povo carente de algo que os identifique.

Luciano Soares

4 comentários:

iecoagente disse...

É uma pena que chegamos ao nível onde as instituições( todas elas, desde a igreja até o poder executivo) estejam tão falidas e tão carentes de líderes que impeçam que essas coisas aconteçam; Mas o problema maior é que essas mesmas instituições são o mais puro reflexo de nós mesmos, esse é o problema; Nós desitimos. Desistimos de nós mesmos e de nossa construção social e cultural em detrinimento da nova lei vigente, onde o ter passa a ser mais importante do que o ser.

Luciano Soares disse...

Concordo com você meu velho amigo, mas não podemos desistir da luta. E precisamos de cabeças pensantes como a sua.

Valeu!

Luciano Soares

Isabelle De Melo Anchieta disse...

Caro Luciano,

é a sua ex-professora Isabelle visitando o seu blog e matando saudade sua, do seu talento e criatividade. Estou muito orgulhosa com seus trabalhos (no plural mesmo). Que bom ter esse canal para acompanhar seu trabalho,

Com admiração,

OBS. Envio email com endereço em seguida para o envio do livro

Isabelle

Luciano Soares disse...

Isabelle, receber elogios de uma pessoa como você engrandece o trabalho de qualquer um. Você sabe que o tal do ego é uma coisa difícil de dominar, e você ainda o alimenta? rsrs
Agradeço muito e digo que o meu crescimento é estruturado no conhecimento que pessoas como você me passaram.

Um grande abraço do seu eterno aluno,

Luciano Soares