Padre Diovanny ajoelha-se para
pedir perdão aos congadeiros.
As portas da Catedral Nossa
Senhora de Oliveira ainda estavam fechadas, quando o primeiro terno subiu suas
escadas. No último degrau, que antecede a entrada principal do templo, o
capitão do grupo começou a cantar, sob os olhares ansiosos de quem estava ali
para testemunhar a história: “No tempo do
cativeiro, era branco que mandava. Quando branco ia pra missa, era negro que
levava. Branco entrava pra dentro e negro lá fora ficava. E se negro
reclamasse, de chiquirá ele apanhava. Negro só ia rezar quando na senzala
chegava. Ai que dó... Ai que dó... Jesus Cristo está no céu, amparando todas as
almas desses pobre negro sofredôoo...”.
Seu canto triste parecia
descrever o lamento de um povo que enfrentou todas as agruras de um tempo cruel,
ao ser arrancado de sua casa, de sua terra, de sua gente, e jogado no porão escuro
de um navio, entre ratos, correntes, fome e frio. Sua voz parecia ecoar as
dores provocadas pelas chibatadas, cem vezes repetidas, até que a submissão e o
fim de uma liberdade, que sequer havia deixado a adolescência, fossem por eles aceitas.
O Reinado do Congado nada mais é
do que uma tentativa de reviver as monarquias de além-mar, numa homenagem do
povo negro à Coroa africana, como a Galanga, rei do Congo, que no Brasil virou
Chico Rei, um herói para aqueles que foram transformados em escravos. A Festa
do Rosário é um ato religioso em celebração aos santos padroeiros, que aqui -
provavelmente para serem aceitos - ganhou a representação de Nossa Senhora
Aparecida, São Benedito, Santa Efigênia, Nossa Senhora das Mercês e Nossa
Senhora do Rosário.
Por não terem onde manter as
imagens de seus santos na cidade, eles construíram, em Oliveira, em período
anterior a 1840, a
Capela do Rosário, onde também eram realizadas as primeiras reuniões da Câmara
Municipal. Mantido pela Irmandade de mesmo nome, o pequeno templo aglutinava
toda a fé de um povo que encontrava na dança e no rufar de seus tambores a
força para suportar a própria existência. Os tempos que pareciam oxigenados
pelo direito universal de crença chegaram ao fim, quando uma ordem expressa
proibiu as manifestações de origem africana em Minas Gerais. O
que parecia ruim tornou-se pior, quando em 1929, a pequena igrejinha
do Rosário, construída pelos negros ainda escravos, foi demolida. Em seu lugar
foi erguida a Catedral de Nossa Senhora de Oliveira, conhecida como Igreja
Nova, considerado ainda o maior templo católico da cidade.
Passaram-se os anos e os
congadeiros ganharam novamente a permissão de realizarem a festa. O Boi do
Rosário saiu pelas ruas da cidade anunciando o recomeço do Reinado, os mastros,
com as bandeiras de cada santo padroeiro, foram reerguidos e os tambores
voltaram a ecoar ao sabor dos ventos de setembro. A felicidade estaria de volta
em sua plenitude às pernas saltitantes dos catopés, moçambiques e vilões, se
não fosse por um detalhe: a igrejinha do Rosário não existia mais, e, por muitos
anos, não lhes foi permitida a entrada no novo templo, erguido sobre suas
ruínas. Há relato de um Missa Conga celebrada na Catedral em 1995, mas desde
então, as celebrações vinham sendo realizadas na Matriz de São Sebastião, no
bairro de mesmo nome.
No último domingo, 6 de setembro,
86 anos depois da demolição da Capela do Rosário, o atual pároco da Catedral, padre
Diovanny Roquim Amaral reabriu as portas do templo para a celebração da Missa
Conga, e de joelhos, pediu perdão aos congadeiros: “Gostaria de me ajoelhar
pedindo perdão. Perdão por aqueles que tiraram a Capelinha do Rosário daqui.
Perdão por aqueles que marcaram essa Igreja e falaram: ‘Não, não vai ser mais a
capela do Rosário, será a Igreja Nova de Oliveira’. Mais uma vez, passava pelo coração
de vocês que estavam de novo fora da Igreja. (...) A palavra de Deus nos acusa.
Acusa os bispos, acusa os padres, acusa-nos a consciência. Por isso, eu quero
pedir perdão. Perdão porque sinto que na casa de Deus todos precisam entrar.
Sinto que na casa de Deus é lugar do pobre, do rico... porque Deus não faz
distinção de pessoas. Quero que essas palavras ressoem no coração de vocês:
‘Deus não faz distinção de pessoas’. Quero que vocês se sintam acolhidos aqui
também nessa Igreja Nova, nessa igreja de Nossa Senhora de Oliveira, na igreja
que queremos colocar nos altares ‘as imagens de Nossa Senhora do Rosário’ para
que nunca seja esquecido que aqui começou essa festa, que aqui começou a
devoção à nossa Senhora do Rosário, em Oliveira”, disse padre Diovanny,
sucedido por uma salva de palmas.
Dos olhos dos congadeiros,
principalmente dos mais velhos, escorriam lágrimas que pareciam lavar a alma e
aliviar o aperto que as mágoas causavam em seus peitos. Até mesmo os fiéis que
não participavam da Festa, choraram. O som dos tambores parecia levar a boa
nova aos negros do Rosário que acompanhavam a missa de um plano espiritual. O
que parecia sólido desmanchou-se no ar numa fração de segundo. O peso daqueles
longos anos se desfragmentou e saiu, leve, pela mesma porta que permitiu a
entrada da tolerância e do perdão.
*Texto e fotos Luciano Soares.
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